Posts sobre algumas coisas que acho por aí

A paisagem mental dos arquivos (escrito em 10/2023)

Comecei a ler um livro de título “O sabor do arquivo” de Arlette Farge esta semana, aproveitando que estou em casa por causa de ter pegado covid.

O livro começa falando sobre um sentimento profundo que é o descobrimento e a exploração da massa documental de vestígios de vidas passadas, no caso explorado no livro, os arquivos da Bastilha, documentos que contam a história de pessoas presas e interrogadas, ao mesmo tempo o arquivo parece referir em nossa mente os eventos da revolução francesa que ainda iria ocorrer quando a massa documental era acumulada. Se torna também referência no otimismo e certeza do iluminismo e das revoluções burguesas, um mundo iluminado pela racionalidade que se orientaria pela verdadeira análise dos fatos alimentados, por sua vez, pela informação e pela massa de documentos probatórios.

Mas em geral, como a autora coloca na introdução, frequentemente ficamos com um vazio quando nos encontramos com esses vestígios, “vem a dúvida mesclada à impotência de não saber o que fazer dele”. Trabalho em uma biblioteca, um dos setores do meu trabalho é o arquivo, uma das coordenadoras do arquivo gosta de compartilhar as experiências de trabalho dela (normalmente dos arquivos de figuras importantes do Brasil).

Em um caso (não da instituição que trabalho) ela contou a história de uma de suas mentoras que encontrou no arquivo de um político fascista brasileiro da década de 30 um grupo de caixinhas de fósforo com uma lagartixa morta dentro de cada uma delas, dentro da boca de cada lagartixa tinha um papel com o nome de uma mulher. Com certeza as lagartixas só podiam ser suas únicas amigas, entretanto em uma conferência de arquivos esta mentora citou esse grupo de “documentos” para a plateia, alguém levantou a mão e explicou que aquilo era um tipo de “simpatia” antiga, um ritual para fazer a mulher mencionada no papel gostar de alguém....

Quando você adentra o arquivo ou a biblioteca pessoal muitas vezes você tem a sensação de estar entrando na mente de alguém, talvez porque seja isto mesmo. Roberto Calasso cita usar um pergaminho para cobrir os livros de sua biblioteca, primeiro para protegê-los da poeira e segundo porque:

[...] deixa muito mais difícil, para um ocasional visitante, identificar os títulos dos livros. E isso freia qualquer excesso de intimidade. Impede aquela situação constrangedora em que, entrando num cômodo, se reconhece rapidamente, mesmo só pela cor e pela estética das lombadas do que é feita a paisagem mental do dono da casa.

Esse é meu parágrafo final; gostaria de agradecer a sua leitura e pedir perdão pela demora na escrita das outras partes da série de textos sobre serendipidade (que estou chamando de serendipia para encurtar) e sobre o campo de estudos sobre a descoberta de algo que não se esperava, estes meses estive ocupado com minha Iniciação Científica, mas agora que estou livre começo a escrever a segunda parte ;)

  • CALASSO, Roberto. Como organizar uma biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. 137 p.
  • FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2022. 119 p.

Serendipia (Parte 1)

O que é?

Para discutir a serendipidade aplicada nas áreas da Ciência da Informação é necessário primeiro discutir o significado dessa palavra esquisita: Serendipidade, ou serendipia para facilitar, significa, brevemente, uma descoberta inesperada, feliz e útil. Isto sugere algo radicalmente contrário, algo esperado, inútil e infeliz (a zemblanidade).

Ou, então, sugere termos mais específicos como a pseudo-serendipidade e a nemorinia. Ainda no caso destas palavras existem as adições “realizadas” e “percebidas” que descrevem seus contextos.

Meu primeiro contato com todas estas expressões da serendipidade foi o texto de Solomon e Bronstein (2018) que visitam a ópera L'elisir d'Amore para descrever as diferentes formas que a serendipia, a pseudo-serendipia, zemblanidade entre outras aparecem no decorrer da história.

Entrar em contato com todos esses termos me trouxe várias dúvidas e questões, mas uma pista importante que foi retirada desse artigo é a forma como os autores abordam o estudo sobre esses fenômenos:

O estudo se utiliza de uma leitura hermeneutica desde uma perspectiva de comportamentos informacionais do libreto L'elisir d'amore [...] através do qual foram identificados diversos "temas centrais" de comportamentos informacionais. (Solomon, Bronstein, 2018, p. 2, tradução nossa)

Através da abordagem descrita fica claro que a serendipia e as palavras adjacentes tratam muito mais do que o acontecimento aleatório sozinho, mas sim como as pessoas interagem com este evento aleatório podendo ser descrito como um comportamento informacional humano.

Esta diferenciação se evidenciará muito importante para entender como a serendipia é tratada e estudada em outros textos que serão analisados mais para frente. Por enquanto outras referências podem ser levantadas sobre o significado de serendipia.

O artigo Serendipity and its study de Foster e Ellis (2014) apresenta um aprofundamento muito maior sobre a serendipia e seus contextos filosóficos, principalmente no contexto da filosofia da ciência e da ciência da informação.

Sobre os textos de Robert Merton sobre a serendipia e o “padrão de serendipia” ou padrão serendipitoso os autores do artigo identificam as influências de Walter Cannon (com seu uso da palavra serendipidade no estudo da ciência) e Charles Peirce (com seu reconhecimento do papel exercido pelo processo lógico de “abdução” de uma hipótese).

Merton elabora que serendipia é a descoberta de um fato inusitado, enquanto que o padrão serendipitoso incluiria também o processo de reconhecer um potencial neste fato inusitado, desenvolvendo uma hipótese explanatória que pode se tornar uma nova teoria ou usada no contexto de outras teorias, ou seja, um processo de abdução.

Identificamos, então, duas distinções simples que podem guiar o entendimento deste conceito aplicado não só nas bibliotecas, mas como os outros espaços de informação, a primeira distinção é a serendipia em si, a sua descoberta como fato inusitado e possível utilização, enquanto que a outra é o agir sobre esta descoberta, incluindo todos os passos e padrões que são vistos no processo científico de abdução.

Podem parecer pouco diferentes, mas as distinções são importantes para descrever o quanto uma pessoa pode estar disposta a dispensar seu tempo em uma pesquisa; se uma pesquisa é acadêmica, uma descoberta inesperada, tangente à temática da pesquisa, têm maior probabilidade de se tornar um padrão serendipitoso, enquanto que uma pessoa que visita despretensiosamente uma biblioteca ou um website esquisito pode achar informações interessantes, úteis e divertidas mesmo que não passando para os passos do padrão serendipitoso.

Esta serendipia da biblioteca, da internet, do museu, do arquivo, etc, será elaborada na terceira parte e continuada na quarta desta série de textos, nestas partes serão discutidos os conceitos de “encontramento de informação” e “browsing”, conceitos estes que completarão um olhar básico sobre a serendipia na Ciência da Informação e seu dia a dia. Na próxima parte (segunda) irei explorar como os conceitos de serendipia são expostos e explicados nos artigos da wikipédia em português, inglês e espanhol, buscando também demonstrar e aplicar formas de melhorar o artigo em português no assunto.

  • FOSTER, Allen Edward; ELLIS, David. Serendipity and its study. Journal Of Documentation, [S.L.], v. 70, n. 6, p. 1015-1038, 7 out. 2014. Emerald. http://dx.doi.org/10.1108/jd-03-2014-0053.
  • SOLOMON, Yosef; BRONSTEIN, Jenny. Information Serendipity, Pseudo-Serendipity, Zemblanity, Disruptive Discovery and Nemorinity: revisiting donizetti's and romani's opera buffa l'elisir d'amore. In: ICONFERENCE 2018, ., 2018, Urbana-Champaign. Proceedings [...] . Urbana-Champaign: iSchool, 2018. p. 1-4. Disponível em: https://hdl.handle.net/2142/100225. Acesso em: 29 jan. 2023.