Posts sobre algumas coisas que acho por aí

Serendipia (Parte 2)

A serendipidade na Wikipédia

A pesquisa sobre um assunto na Wikipédia é, muitas vezes, um ótimo primeiro passo para uma pesquisa mais aprofundada. Através das referências pode-se criar um “mapa” bibliográfico do assunto e ampliar a base da pesquisa para outras fontes.

No entanto, é comum que a Wikipédia seja vista como uma fonte em si. Apesar das formas de impedir que muitos conteúdos incompletos ou incorretos cheguem aos artigos, sempre haverá artigos de assuntos não muito comuns que terão estas características. Entretanto, mesmo que as informações de um artigo não contemplem todo seu assunto, a adição de, ou a falta de outros termos e assuntos nos dá informações úteis sobre o discurso e a consciência sobre o que se discute.

Nesse caso, não estou sugerindo que os artigos que serão analisados são ruins, mas quero sim dizer que o terreno do conceito de serendipia, assim como a “criatividade” e a “inovação”, são terrenos contestados.

Para este texto estarei analisando três artigos da Wikipédia sobre serendipia, um em inglês, outro em português e outro em espanhol.

A Wikipédia brasileira descreve o conceito da serendipia e conceitos adjacentes como características individuais, habilidades cognitivas que são extensões da criatividade de uma pessoa:

Inovações apresentadas como exemplo de serendipidade apresentam uma característica importante: foram feitas por indivíduos capazes de “ver pontes onde outros viam buracos” e ligar eventos de modo criativo com base na percepção de um vínculo significativo.

A chance é um evento, a serendipidade uma capacidade (astuciosa). O Prêmio Nobel Paul Flory sugere que invenções significativas não são meros acidentes. (Wikipédia, 2024)

Ainda nestes exemplos:

Trata-se de uma qualidade muitas vezes incompreendida para a descoberta e inovação. Pode se constituir numa ferramenta poderosa na contribuição de percepções inovadoras que conduzem à realização de visões empreendedoras. Ao entender o processo de seu desenvolvimento e utilização, os gestores e pesquisadores podem usar o acaso como importante contribuição para o sucesso competitivo da empresa. (Wikipédia, 2024)

A serendipidade nesse contexto se torna uma habilidade individual que surge a partir da percepção de determinadas pessoas. É uma observação verdadeira, em certo sentido uma pessoa deve ser curiosa e criativa para aproveitar um acontecimento feliz, mas podemos ver a forma como essa descoberta é condicionada também nos valores e contextos sociais. A serendipidade, como mencionado no trecho “[...]os gestores e pesquisadores podem usar o acaso como importante contribuição para o sucesso competitivo da empresa.”, é entendida em um contexto capitalista bastante semelhante à lógica taylorista, onde a informação e sua organização contribui e tem seu motivo de existir justificado pela melhor gestão de uma empresa.

A Wikipédia em inglês é bem mais sucinta em suas descrições, partem da explicação e referências principalmente ligadas a filosofia da ciência. O artigo se refere, também, a textos e descrições que focam a serendipia como um aspecto do comportamento informacional humano, sempre presente na maneira como interagimos com o mundo. São abordagens mais ligadas à psicologia e à ciência da informação em um contexto interdisciplinar. 

Apesar de ser breve, encontramos uma elaboração melhor sobre o papel ativo do indivíduo. Entende-se pela leitura do texto, que a descoberta serendipitosa é a soma da descoberta feliz e o papel ativo e criativo humano.

A Wikipédia em espanhol se aprofunda no contexto da filosofia da ciência na sua descrição de serendipia, o artigo destaca algo que o artigo em português parece começar, mas sem concluir o raciocínio: “O conceito original de serendipismo foi muito usado em sua origem. Nos dias de hoje [...]” (Wikipedia, português, 2024); 

“La palabra serendipity se usó mucho en sus orígenes, pero fue cayendo en desuso. [...] El concepto y el término fueron rescatados en 1989 por Royston M. Roberts en su libro de divulgación Serendipia. Descubrimientos accidentales en la ciencia.” (Wikipedia, espanhol, 2024).

A frase “O conceito original de serendipismo foi muito usado em sua origem.” praticamente se repete nos dois artigos, mas, enquanto o artigo em português bruscamente termina essa linha de raciocínio, o artigo em espanhol trata a reutilização do conceito na filosofia da ciência como ponto central e importante.

Para finalizar, o artigo em espanhol cita outro sinônimo de serendipia: “chiripa”. O artigo diferencia os dois onde o último se refere a acontecimentos oportunos, enquanto a serendipia descreve os acontecimentos + as habilidades de uma pessoa em absorvê-lo, interpretá-lo e usá-lo. É ainda do artigo em espanhol que retiro o termo alternativo para serendipidade em português: serendipia.

Podemos ver que a serendipia nos três artigos é conectada profundamente à criatividade e à inovação, e da mesma forma herda destes dois conceitos o terreno traiçoeiro de suas discussões teóricas. Quando um destes conceitos se encontra como uma unidade importante na estrutura social, seu contexto paradigmático e complexo não é traduzido, o processo de criatividade e de inovação se torna o “valor” criatividade e inovação. 

 Helena Santos (2018, p 29) descreve esse fenômeno como a “pseudocientificação de conceitos como criatividade, empreendedorismo ou inovação, evacuados da sua origem teórica e epistemologicamente reflexiva das ciências sociais”.

A partir destas leituras foi possível identificar algo importante sobre estes conceitos: a forma como eles são entendidos estão profundamente conectados à sua parte na estrutura social. Esses processos e fenômenos se tornam valores que podem ser medidos conforme sua importância para a reprodução no sistema. Os valores criatividade, inovação e serendipidade são características individuais que garantem o sucesso ou insucesso de alguém.

Essa observação abre novas questões: como esses processos são entendidos dentro da ciência da informação? 

A ciência da informação, como parte integrante e importante do sistema de reprodução da informação no contexto capitalista, obviamente é impactada. Conforme seu papel dentro das diversas indústrias aumenta de importância, mais absorvida a área se torna no sistema epistemológico da produção de commodities. Conforme mais adequada a área se torna a esse papel mais a informação se torna objetificada, mais o conhecimento se naturaliza como propriedade privada.

A paisagem mental dos arquivos (escrito em 10/2023)

Comecei a ler um livro de título “O sabor do arquivo” de Arlette Farge esta semana, aproveitando que estou em casa por causa de ter pegado covid.

O livro começa falando sobre um sentimento profundo que é o descobrimento e a exploração da massa documental de vestígios de vidas passadas, no caso explorado no livro, os arquivos da Bastilha, documentos que contam a história de pessoas presas e interrogadas, ao mesmo tempo o arquivo parece referir em nossa mente os eventos da revolução francesa que ainda iria ocorrer quando a massa documental era acumulada. Se torna também referência no otimismo e certeza do iluminismo e das revoluções burguesas, um mundo iluminado pela racionalidade que se orientaria pela verdadeira análise dos fatos alimentados, por sua vez, pela informação e pela massa de documentos probatórios.

Mas em geral, como a autora coloca na introdução, frequentemente ficamos com um vazio quando nos encontramos com esses vestígios, “vem a dúvida mesclada à impotência de não saber o que fazer dele”. Trabalho em uma biblioteca, um dos setores do meu trabalho é o arquivo, uma das coordenadoras do arquivo gosta de compartilhar as experiências de trabalho dela (normalmente dos arquivos de figuras importantes do Brasil).

Em um caso (não da instituição que trabalho) ela contou a história de uma de suas mentoras que encontrou no arquivo de um político fascista brasileiro da década de 30 um grupo de caixinhas de fósforo com uma lagartixa morta dentro de cada uma delas, dentro da boca de cada lagartixa tinha um papel com o nome de uma mulher. Com certeza as lagartixas só podiam ser suas únicas amigas, entretanto em uma conferência de arquivos esta mentora citou esse grupo de “documentos” para a plateia, alguém levantou a mão e explicou que aquilo era um tipo de “simpatia” antiga, um ritual para fazer a mulher mencionada no papel gostar de alguém....

Quando você adentra o arquivo ou a biblioteca pessoal muitas vezes você tem a sensação de estar entrando na mente de alguém, talvez porque seja isto mesmo. Roberto Calasso cita usar um pergaminho para cobrir os livros de sua biblioteca, primeiro para protegê-los da poeira e segundo porque:

[...] deixa muito mais difícil, para um ocasional visitante, identificar os títulos dos livros. E isso freia qualquer excesso de intimidade. Impede aquela situação constrangedora em que, entrando num cômodo, se reconhece rapidamente, mesmo só pela cor e pela estética das lombadas do que é feita a paisagem mental do dono da casa.

Esse é meu parágrafo final; gostaria de agradecer a sua leitura e pedir perdão pela demora na escrita das outras partes da série de textos sobre serendipidade (que estou chamando de serendipia para encurtar) e sobre o campo de estudos sobre a descoberta de algo que não se esperava, estes meses estive ocupado com minha Iniciação Científica, mas agora que estou livre começo a escrever a segunda parte ;)

  • CALASSO, Roberto. Como organizar uma biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. 137 p.
  • FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2022. 119 p.

Serendipia (Parte 1)

O que é?

Para discutir a serendipidade aplicada nas áreas da Ciência da Informação é necessário primeiro discutir o significado dessa palavra esquisita: Serendipidade, ou serendipia para facilitar, significa, brevemente, uma descoberta inesperada, feliz e útil. Isto sugere algo radicalmente contrário, algo esperado, inútil e infeliz (a zemblanidade).

Ou, então, sugere termos mais específicos como a pseudo-serendipidade e a nemorinia. Ainda no caso destas palavras existem as adições “realizadas” e “percebidas” que descrevem seus contextos.

Meu primeiro contato com todas estas expressões da serendipidade foi o texto de Solomon e Bronstein (2018) que visitam a ópera L'elisir d'Amore para descrever as diferentes formas que a serendipia, a pseudo-serendipia, zemblanidade entre outras aparecem no decorrer da história.

Entrar em contato com todos esses termos me trouxe várias dúvidas e questões, mas uma pista importante que foi retirada desse artigo é a forma como os autores abordam o estudo sobre esses fenômenos:

O estudo se utiliza de uma leitura hermeneutica desde uma perspectiva de comportamentos informacionais do libreto L'elisir d'amore [...] através do qual foram identificados diversos "temas centrais" de comportamentos informacionais. (Solomon, Bronstein, 2018, p. 2, tradução nossa)

Através da abordagem descrita fica claro que a serendipia e as palavras adjacentes tratam muito mais do que o acontecimento aleatório sozinho, mas sim como as pessoas interagem com este evento aleatório podendo ser descrito como um comportamento informacional humano.

Esta diferenciação se evidenciará muito importante para entender como a serendipia é tratada e estudada em outros textos que serão analisados mais para frente. Por enquanto outras referências podem ser levantadas sobre o significado de serendipia.

O artigo Serendipity and its study de Foster e Ellis (2014) apresenta um aprofundamento muito maior sobre a serendipia e seus contextos filosóficos, principalmente no contexto da filosofia da ciência e da ciência da informação.

Sobre os textos de Robert Merton sobre a serendipia e o “padrão de serendipia” ou padrão serendipitoso os autores do artigo identificam as influências de Walter Cannon (com seu uso da palavra serendipidade no estudo da ciência) e Charles Peirce (com seu reconhecimento do papel exercido pelo processo lógico de “abdução” de uma hipótese).

Merton elabora que serendipia é a descoberta de um fato inusitado, enquanto que o padrão serendipitoso incluiria também o processo de reconhecer um potencial neste fato inusitado, desenvolvendo uma hipótese explanatória que pode se tornar uma nova teoria ou usada no contexto de outras teorias, ou seja, um processo de abdução.

Identificamos, então, duas distinções simples que podem guiar o entendimento deste conceito aplicado não só nas bibliotecas, mas como os outros espaços de informação, a primeira distinção é a serendipia em si, a sua descoberta como fato inusitado e possível utilização, enquanto que a outra é o agir sobre esta descoberta, incluindo todos os passos e padrões que são vistos no processo científico de abdução.

Podem parecer pouco diferentes, mas as distinções são importantes para descrever o quanto uma pessoa pode estar disposta a dispensar seu tempo em uma pesquisa; se uma pesquisa é acadêmica, uma descoberta inesperada, tangente à temática da pesquisa, têm maior probabilidade de se tornar um padrão serendipitoso, enquanto que uma pessoa que visita despretensiosamente uma biblioteca ou um website esquisito pode achar informações interessantes, úteis e divertidas mesmo que não passando para os passos do padrão serendipitoso.

Esta serendipia da biblioteca, da internet, do museu, do arquivo, etc, será elaborada na terceira parte e continuada na quarta desta série de textos, nestas partes serão discutidos os conceitos de “encontramento de informação” e “browsing”, conceitos estes que completarão um olhar básico sobre a serendipia na Ciência da Informação e seu dia a dia. Na próxima parte (segunda) irei explorar como os conceitos de serendipia são expostos e explicados nos artigos da wikipédia em português, inglês e espanhol, buscando também demonstrar e aplicar formas de melhorar o artigo em português no assunto.

  • FOSTER, Allen Edward; ELLIS, David. Serendipity and its study. Journal Of Documentation, [S.L.], v. 70, n. 6, p. 1015-1038, 7 out. 2014. Emerald. http://dx.doi.org/10.1108/jd-03-2014-0053.
  • SOLOMON, Yosef; BRONSTEIN, Jenny. Information Serendipity, Pseudo-Serendipity, Zemblanity, Disruptive Discovery and Nemorinity: revisiting donizetti's and romani's opera buffa l'elisir d'amore. In: ICONFERENCE 2018, ., 2018, Urbana-Champaign. Proceedings [...] . Urbana-Champaign: iSchool, 2018. p. 1-4. Disponível em: https://hdl.handle.net/2142/100225. Acesso em: 29 jan. 2023.