Comecei a ler um livro de título “O sabor do arquivo” de Arlette Farge esta semana, aproveitando que estou em casa por causa de ter pegado covid.
O livro começa falando sobre um sentimento profundo que é o descobrimento e a exploração da massa documental de vestígios de vidas passadas, no caso explorado no livro, os arquivos da Bastilha, documentos que contam a história de pessoas presas e interrogadas, ao mesmo tempo o arquivo parece referir em nossa mente os eventos da revolução francesa que ainda iria ocorrer quando a massa documental era acumulada. Se torna também referência no otimismo e certeza do iluminismo e das revoluções burguesas, um mundo iluminado pela racionalidade que se orientaria pela verdadeira análise dos fatos alimentados, por sua vez, pela informação e pela massa de documentos probatórios.
Mas em geral, como a autora coloca na introdução, frequentemente ficamos com um vazio quando nos encontramos com esses vestígios, “vem a dúvida mesclada à impotência de não saber o que fazer dele”. Trabalho em uma biblioteca, um dos setores do meu trabalho é o arquivo, uma das coordenadoras do arquivo gosta de compartilhar as experiências de trabalho dela (normalmente dos arquivos de figuras importantes do Brasil).
Em um caso (não da instituição que trabalho) ela contou a história de uma de suas mentoras que encontrou no arquivo de um político fascista brasileiro da década de 30 um grupo de caixinhas de fósforo com uma lagartixa morta dentro de cada uma delas, dentro da boca de cada lagartixa tinha um papel com o nome de uma mulher. Com certeza as lagartixas só podiam ser suas únicas amigas, entretanto em uma conferência de arquivos esta mentora citou esse grupo de “documentos” para a plateia, alguém levantou a mão e explicou que aquilo era um tipo de “simpatia” antiga, um ritual para fazer a mulher mencionada no papel gostar de alguém....
Quando você adentra o arquivo ou a biblioteca pessoal muitas vezes você tem a sensação de estar entrando na mente de alguém, talvez porque seja isto mesmo. Roberto Calasso cita usar um pergaminho para cobrir os livros de sua biblioteca, primeiro para protegê-los da poeira e segundo porque:
[...] deixa muito mais difícil, para um ocasional visitante, identificar os títulos dos livros. E isso freia qualquer excesso de intimidade. Impede aquela situação constrangedora em que, entrando num cômodo, se reconhece rapidamente, mesmo só pela cor e pela estética das lombadas do que é feita a paisagem mental do dono da casa.
Esse é meu parágrafo final; gostaria de agradecer a sua leitura e pedir perdão pela demora na escrita das outras partes da série de textos sobre serendipidade (que estou chamando de serendipia para encurtar) e sobre o campo de estudos sobre a descoberta de algo que não se esperava, estes meses estive ocupado com minha Iniciação Científica, mas agora que estou livre começo a escrever a segunda parte ;)
- CALASSO, Roberto. Como organizar uma biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. 137 p.
- FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2022. 119 p.